31 de outubro de 2013

OITO

"Às vezes eu faço isso de vestir um terno preto que eu tenho para ocasiões formais, como enterros, e pegar uma pasta vazia que comprei em um brechó. Só que não vou para a escola.        
Eu treino ser adulto, fingindo que estou indo para o trabalho.                 Caminho em direção à estação de trem, e, cerca de uns dois quarteirões dali, eu me junto às outras pessoas de ternos carregando pastas.                           Estudei suas expressões mortas o suficiente para me misturar a eles.         Marcho como um soldado, imitando os passos, balançando minha maleta vazia do mesmo jeito - quase em passo de ganso.                                          
Eu insiro moedas nas máquinas no lado de fora da estação e pego um jornal de papel à moda antiga, que enfio debaixo do braço, só para me confundir com a multidão.                              
Pego minha passagem na máquina.                                                           
Desço pela escada rolante.                                                                         
Então fico parado como zumbi esperando o trem chegar.                                 Eu sei que isso vai parecer errado, mas sempre que visto meu terno de enterro, vou para a estação de trem e finjo que tenho um emprego na cidade, isso sempre me faz pensar nos trens nazistas que levavam os judeus da Segunda Guerra Mundial para os campo de concentração. Herr Silverman nos ensinou sobre isso. Eu sei que é uma comparação horrível, talvez até ofensiva, mas aguardando ali na plataforma, entre os homens de terno, sinto que estou esperando para ir para alguma lugar horrível, onde tudo o que é bom acaba e, em seguida, a miséria perdura para todo o sempre - o que me faz lembrar das terríveis histórias que aprendemos nas aulas sobre Holocausto, seja isso ofensiva ou não.                                Quer dizer, nós ganhamos a Segunda Guerra Mundial, certo?                    E, no entanto, todos esses adultos - filhos, filhas e netos de nossos heróis da Segunda Guerra - continuam a entrar em trens da morte metafóricos, mesmo tendo derrotado os nazifascistas há muito tempo. Portanto, cada americano é livre para fazer o que quiser aqui neste grande país supostamente livre. Por que não usam sua liberdade para buscar a felicidade?"

PERDÃO, LEONARD PEACOCK
MATTHEW QUICK 


  

5 de outubro de 2013

11


Virgínia tem ímpetos  de jogar o frasco de perfume na cabeça da Noca, quando a rapariga lhe vem anunciar com a voz  fanhosa:
- O chã tã pronto.
Fica parada ali na porta, a cara idiota, a cabeça minúscula de passarinho no alto do pescoço descarnado e comprido: uma pera na ponta da vara. E aquele esgar canino, aquela máscara de palhaço cretino, aqueles olhinhos espantados... Não: a gente tem vontade de jogar uma coisa na cabeça dela...Virgínia fuzila para a criada um olhar colérico.
Outra vez a voz fanhosa:
- Estã pronto  o chã, dona Virgínia.
É demais. Nem uma santa aguenta.
- Já ouvi! - berra. - Já ouvi! Não sou surda.
O sorriso canino persiste, deixando visíveis os dentes amarelados, pontiagudos e minúsculos. E é bem um olhar de cão surrado - um olhar de simpatia e fidelidade medrosa que a rapariga lança para a patroa quando esta passa por ela.
A patroa surra na gente, mas a patroa é boa, dá dinheiro, dá vestido bonito. Dona Virgínia  grita com a gente - mas depois dá risada pra gente.
E o olhar amoroso segue o vulto quente e perfumado da mulher de roupão azul que desce a escada porque "o chã tã pronto". 
 CAMINHOS CRUZADOS
ERICO VERISSIMO